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Eu soube que estava em apuros assim que a frase saiu da boca dele. Aliás, quem é que não sabe que arrumou problemas ao ouvir essa frase? "Precisamos conversar" é eufemismo para "você fez algo errado e estou bravo com isso."
- Podemos sentar aqui fora? - Ele fez um gesto com a mão, indicando as cadeiras de madeira sobre o alpendre.
- Claro.
Ainda incerta sobre o motivo daquela situação, me afastei da porta e me acomodei em um dos móveis. Ele puxou outra cadeira e a posicionou de modo que ficasse de frente para mim, então se sentou.
Será que sua visita estava relacionada à minha ausência no jogo?
-E aí, demos uma surra deles? - brinquei, me referindo ao time adversário, tentando acabar com o clima pesado e constrangedor que se instalara.
Sua expressão se suavizou um pouco quando disse:
-Sem sobre de dúvida, minha cara. - Fez um tom galanteador, então voltou a colocar a máscara de seriedade - Katniss, nós precisamos conversar sobre seu namoro. - o tom mudou ao dizer a última palavra, ficando ainda mais sério.
Engoli em seco.
- Meu namoro? O que você quer conversar sobre meu namoro, Gale? - Tentei soar menos amedrontada do que me sentia.
Eu não aguentaria a humilhação se Peeta tivesse contado ao moreno sobre a farsa. Não aguentaria ter que escutar dele o que eu já sabia e que me recusava a compreender. Já era ruim o suficiente ter só minha consciência gritando comigo. Ouvir mesmo, sentir as palavras passando por meu ouvidos, vindas de outra pessoa, seria humilhante demais.
Isso, claro, sem contar que ele sabia como Peeta realmente se sentia em relação a minha pessoa.
Dependendo da resposta do meu loiro favorito: na melhor das hipóteses, eu não teria mais coragem de encará-lo nos olhos; na pior, eu fugiria para o México e mudaria meu nome para Maria de La Terra - tamanha a vergonha sentida.
- Bem... você não acha tudo meio estranho?
- Estranho?
- É. Você sabe.. - tentou encontrar as palavras - Vocês não agem como um casal normal...
O.K Talvez nós não fossemos os melhores atores do mundo - principalmente com um papel complicado como um casal de adolescentes - mas eu considerava nosso trabalho razoavelmente bom para convencer as pessoas ao redor. Então, Gale só não foi enganado devido aquele dia em que Peeta desabafou com ele.
- Eu não estou entendendo nada, Gale.
- Eu não sei, Kat. Vocês só não são como Madge e eu ou Clove e Cato.
Seus olhos azuis brilharam de maneira estranha e eu soube que não era isso que ele queria dizer. Percebi então que Gale não dizia o que queria porque assim ele teria que admitir que sabia demais.
- Somos diferentes. Isso não significa que não somos um casal. - dei de ombros.
Por enquanto estava tudo sendo bem melhor do que eu imaginava. Ao que parece, o moreno não sabia do nosso pequeno segredo sujo.
Ele olhou para o lado, em um típico gesto de quem tenta controlar o temperamento. Eu nunca pensei que viveria para ver o Gale Hawthorne nesse tipo de problema. Justo ele que sempre foi tão bom em controlar as próprias emoções e em "ler" as emoções dos outros.
Achei isso bem fofo. A preocupação comigo e/ou com Peeta devia estar incomodando-o mesmo para fazê-lo perder o controle.
- Certo. Você tem razão. - concordou resignadamente.
Parou por um instante, como se estivesse criando coragem para o que faria a seguir. Coçou a nuca antes de recomeçar:
- Foi bem repentino esse namoro de vocês, não?
Apertei os braços da cadeira, tentando disfarçar minhas mãos trêmulas.
- Não foi tão repentino assim, Gale. Como Peeta disse, nós estávamos mantendo tudo em segredo para contar assim que a vovó Mellark chegasse.
- Ah! sim. - Me analisou atentamente.- Mas como vocês sabiam que ela estava vindo?
Mordi o lábio inferior, meu cérebro raciocinando freneticamente à procura de uma desculpa convincente.
- Sra. Mellark comentou que era grande a possibilidade de ela vir visitá-los esse mês.
O.K essa parecia uma desculpa razoável. Contudo, o loiro não desistia. A determinação não sumia de seu rosto enquanto ele continuava o interrogatório, tentando me encurralar em algum lugar onde eu não teria opção senão admitir a verdade por trás de tudo.
"- Onde vocês se encontravam?"
"-Quando começou?"
"Como começou?"
"-Alguém sabia sobre vocês?"
"-Quando Mad, eu e vocês dois fomos ao cinema, vocês já estavam juntos, então?"
Respondi tudo com evasivas, tentando não me contradizer. -Vocês...
- Chega, Gale! - Explodi - Se você não acredita em mim, por que continua perguntando?
Ele ficou boquiaberto e teve a decência de se mostrar um pouco envergonhado.
- Eu não disse que não acredito em você, Kat!
- Pois é o que parece!
- Desculpe. - esfregou as mãos pelo rosto.
Outro silêncio incômodo se instalou.
- Katniss, você quer me contar alguma coisa? - Grudou suas tempestades em meus olhos.
Seu tom havia mudado de inquisidor para preocupado, mesmo assim eu preferia o silêncio àquela pergunta.
Eu não gostava de mentir para todos que amo. E eu odiava mentir para Gale. Ele sempre me deu os melhores conselhos nos momentos mais difíceis - e esses normalmente envolviam Peeta e suas namoradas. E o pior de tudo era ter ciência de que nunca houve um momento em que eu precisasse tanto de um conselho como eu precisava agora.
Todavia eu gostava muito do meu nome e também não queria ter que aprender o hino do México.
Gale Hawthorne já sentia pena de mim por saber o quanto Peeta me detestava. Eu não deixaria sua compaixão aumentar ainda mais por descobrir o quão pateticamente eu podia agir - apesar de ele já ter uma boa noção graças a minha perseguição ao seu melhor amigo ao longo dos anos.
- Não.- falei, forçando um sorriso. - Por quê?
- Você tem certeza? - Ignorou minha pergunta.
NÃO.
-Sim.
Seus olhos faiscaram outra vez. Eles me diziam que sabiam que eu estava mentindo.
- Kat, você sabe que pode me contar tudo, qualquer coisa.- segurou uma de minhas mãos entre as dele -Eu sei guardar segredo. - me analisou - Ainda mais os seus.
Sorri fraco. Gale era mais confiável que um padre ouvindo confissão. Ele jamais revelaria o que lhe fora confiado.
Senti-me tentada a jogar tudo para o alto e aliviar um pouco o peso em minhas costas dividindo minhas preocupações, mas isso, além de humilhante, seria injusto com meu amigo, pois ele também teria que começar a viver uma mentira participando da farsa que Peeta e eu criamos.
- Eu sei. Não há nada errado.- me remexi incomodada na cadeira, desviando o olhar.
Ele soltou o ar pesadamente e provavelmente começaria outro discurso para arrancar a verdade se eu não o tivesse interrompido:
- Já que nós ganhamos o jogo, você não deveria estar comemorando?
- Todos foram ao Rox's. Eu disse que tinha que fazer uma coisa antes de ir para lá também.
-Oh! Eu estou atrasando você!
- Claro que não Kat. Deixa de bobeira. - Soltou minhas mãos e olhou para o relógio de pulso.- Mas acho melhor eu ir embora antes que a sua melhor amiga coloque o exército atrás de mim. Eu disse que só demoraria alguns minutos e já faz quase uma hora que saí.
Levantou-se e eu repeti o gesto.
- Obrigada por ter vindo, Gale. Você é um ótimo amigo.
- Sempre que precisar, Katniss, eu vou estar aqui. - sorriu. - Vamos comigo ao Rox's?
- Deixa para a próxima vitória. Eu ainda estou com dor de cabeça. Arqueou a sobrancelha.
- Certo. - deu um beijo em minha bochecha - Tchau, Kat.
Observei ele descer os degraus do alpendre, seguindo até seu Carro preto. Gale estava na metade do caminho quando se virou e disse com a voz triste:
- Não faz bem mentir para os amigos, Katniss. Isso vai lhe deixar doente aos poucos.
Quando ele deu as costas novamente senti um frio subir por toda minha espinha, pois sabia que sua última frase nada tinha a ver com a inverdade sobre minha dor de cabeça.


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